
E SE UM DIA EU VOLTASSE A SER CRIANÇA
Capitulo 1
O diário que Mia veio a escrever pouco tempo antes de ter partido, tornou-se num dos melhores dramas conhecidos até à atualidade.
Por todas as ruas do Porto se ouviam contar boatos de uma tragédia que abalara a família Silva. Passados alguns meses, mesmo assim, por todas aquelas ruelas estreitas e sinuosas, cobertas por alcatrão, as paredes mantinham-se à escuta, à espera de ouvirem mais uma das duzentas mil milhões de versões que inventaram relativamente a um suicídio.
Martim voltara à cidade natal em 2029, depois de ter completado 18 anos de idade. Chegara ao Porto em Julho, vinha um rapaz novo, trazia consigo a namorada, uma rapariga alta e morena de olhos verdes, chamada Nádia. Contava-se por lá que Martim tinha vindo para ficar, depois da sua estadia em Lisboa durante algum anos.
Pelas ruas, só se ouviam murmúrios, e viam-se de longe os falsos sorrisos que se esbatiam a longo prazo nas caras dos vizinhos. Martim ia subindo a rua esguia por entre as casas falantes, dirigindo-se ligeiro até um casebre no final da estrada.
Na porta tinha uma pequena lápide de mármore antiga, já quase a cair aos pedaços, cor de musgo com umas flores desenhadas em volta, que dizia: "Família Silva". O pequeno casebre estava completamente abatido, as suas paredes que outrora eram brancas, estavam agora num tom amarelado, cheias de fungos e quase a desabar. Era uma casa pequena com apenas dois quartos, uma sala, uma cozinha e uma casa de banho. Todas as divisões estavam num estado lastimável, havia cartas de contas por pagar no meio do chão, as paredes estavam cheias de humidade assim como os móveis de madeira antiga que Maria adorava.
Anteriormente aquele lugar era um mundo de emoções, havia quadros com mensagens positivas por toda a casa, a música nunca parava de tocar, havia sempre um cheirinho doce que pairava no ar e o melhor de tudo, havia amor por todo o lado.
Foi no ano de 2014, quando toda a gente o tratava por Tim, foi antes dos famosos atentados ao jornal Charlie Hebdo, antes de a Adele publicar o seu terceiro álbum e ele mal podia esperar pela sua festa dos quatro anos.
Num dia quente de outono ouviam-se lindamente os pequenos rouxinóis a cantar no topo das árvores, o sol estava abrasador e não corria nem um bocadinho de vento, portanto Martim decidiu ir brincar para o seu jardim, onde tinha todos os seus amiguinhos, a Jojoca, o Tritão e o Jujuba, que por coincidência eram todos animais, mas só o Martim é que os conseguia ver. A Jojoca era uma joaninha, o Tritão era um macaco e o Jujuba era um leão, mas não era um leão qualquer, o Jujuba era o rei do jardim da família Silva.
Martim estava a divertir-se bastante a brincar com os seus amigos imaginários, que para ele não eram assim tão imaginários, até que de repente um barulho saiu vindo de dentro da casa.
-Esperem amigos, eu já volto, vou explorar a situação e resolver o mistério do barulho! - disse Martim enquanto olhava para o solitário baloiço que estava supostamente a ser ocupado por um dos seus três animais.
Assim que entrou em casa, o menino viu a mãe sentada no chão de madeira lascada a chorar como se não houvesse amanhã.
-Mamã que se passa!? - perguntou o pequeno Tim tentando levantar a cabeça à pobre senhora.
A mãe não lhe respondia, até que de repente Mia entrou em casa, tinha chegado da escola e deu de caras com o pai a sair com as malas na mão.
-Pai vais viajar outra vez?
-Sim querida, mas desta vez o pai não vai voltar...
-Então porquê!? - pergunta ela assustada.
-Filha a mãe depois explica-te tudo, mas agora o pai tem de ir embora, adeus minha querida, cuida bem de ti e do Martim. - e assim ele fez, saiu pela porta fora sem dar nenhuma explicação plausível à filha de catorze anos e nunca mais a voltou a ver.
A pobre Mia não percebia o que se estava a passar, para ela era normal o pai ir viajar, ele trabalhava numa agência de viagens como guia turístico, raramente estava em casa, por isso era muito difícil ela e o irmão estarem com ele.
Martim saiu da sala a correr em direção ao seu quarto, enquanto Mia se ia dirigindo à divisão onde estava sua mãe.
- Mãe! O que se passa!? - perguntou a menina, sentando-se ao seu lado.
-Não se passa nada meu amor, está tudo bem, respondeu Maria enquanto limpava as lágrimas e se tentava levantar do soalho rachado.
A menina ficou calada enquanto via sua mãe sair pela porta da sala em direção ao seu quarto.
Os dias foram passando e tanto a Mia como o Martim não sentiam a falta do pai, para eles já era habitual ele não estar presente na hora do pequeno almoço, na hora do almoço e muito menos na hora do jantar.
Um dia, enquanto Mia voltava da escola, passou por uma senhora idosa que estava deitada num banco de jardim com um saco cheio de quinquilharias.
A menina ficou parada a olhar para aquela senhora baixa, velha de cabelos brancos, que por sinal não parecia ter um teto onde viver nem comida para se alimentar. Foi nessa altura que Mia se lembrou de que não tinha comido o seu pão com manteiga à hora do lanche e decidiu dá-lo à pobre senhora.
Capitulo 2
-Boa tarde, desculpe incomodá-la, não me leve a mal, mas gostava de oferecer-lhe este pão, sei que não é muito, mas espero puder ajudar pelo menos em troca de um pequeno sorriso. - disse Mia enquanto se aproximava da mendiga e se ajoelhava perto dela.
-Eu não acredito... - respondeu a senhora com lágrimas nos olhos - estou neste banco há mais de um dia e tu minha querida foste a única pessoa que reparou que eu estava aqui, mas sinto que não devo aceitar a tua oferta, afinal esse é o teu lanche.
-Não se preocupe, eu já almocei e não tenho fome, aqui tem! - dizendo isto, a menina colocou o pão nas mãos da senhora e levantou-se.
-Por favor, aceita um dos meus tesouros. - pediu a senhora abrindo um saco de pano castanho e sujo que estava ao seu lado.
-Deixe estar não é preciso! - respondeu Mia.
Aquela pobre senhora ficou destroçada, levantou-se do banco de madeira onde estava outrora sentada, pegou naquele saco velho e a cambalear foi-se afastando.
-Espere, peço desculpa se me fiz interpretar mal, eu pensei que não quisesse perder um dos seus lindos tesouros, ainda posso tirar um?
A mulher sorriu e abriu o saco, fazendo com que os olhos de Mia se direcionassem de imediato para um caderno de cor azul ciano que estava por baixo de um espelho.
-Boa escolha Mia!
-Como é que sabe o meu nome? - perguntou a menina.
-Simplesmente sei, adeus e obrigada minha querida!
Dito isto a senhora virou costas e seguiu lentamente por aquele passeio destruído, graças às raízes das árvores, que tentavam ver-se livres daquele maldito cimento que as aprisionava.
Mia seguiu o seu caminho de regresso a casa e não tardou muito até lá chegar. Assim que entrou pela porta de madeira lacada, deu de caras com a mãe de cigarro meio apagado na boca e copo na mão sentada no sofá de pano preto que ficava no canto da sala mesmo encostado à janela.
-Mãe está tudo bem? - perguntou Mia.
-Não me apetece falar agora Mia, vai para o teu quarto!
A menina baixou a cabeça e com a lágrima no canto do olho fez o que a mãe lhe mandou sem retorquir.
Do nada Martim entrou no quarto a chorar:
-Mia, a mamã bateu-me, eu cheguei a beira dela e só disse: "porquê que não falas para mim mamã e ela bateu-me logo, assim PUMBA!".
-Estás a dizer-me a verdade Martim?
-Sim Mia, eu prometo que te estou a dizer a verdade, olha! - dizendo isto o menino mostra a marca da mão da mãe nas suas costas.
A menina ficou perplexa ao ver o estado do irmão, mas não teve coragem de ir até à sala confrontar a mãe.
-Martim não te preocupes, vai lavar os dentinhos e vestir o pijama e vem para o quarto que a mana lê-te uma história.
-Está bem! - respondeu o menino limpando as lágrimas pesadas que escorriam pelo seu rosto.
Mia sentou-se na secretária para fazer os trabalhos de casa, mas assim que abriu a mochila, todos os cálculos matemáticos desapareceram dando lugar à imagem daquela velha senhora. Sem esperar, pegou no pequeno tesouro e abriu-o devagar ficando curiosa com aquilo que viu, dentro daquele caderno havia só um grande "nada", portanto Mia decidiu dar-lhe vida:
"13 de Junho de 2014
Chamo-me Mia Silva, tenho catorze anos e vivo no Porto.
Querido diário, sim é verdade, mais cliché seria impossível, mas não é isso que importa. Hoje foi um dia horrível, quando me levantei de manhã pelas 07:30h., reparei que nada está como era dantes, há uns dias atrás a minha mãe acordava-me com beijos na face, assim como fazia todas as manhãs, tanto a mim como ao meu irmão, mas agora não, agora é totalmente diferente, até porque ela nem estava em casa, disseram-me os vizinhos que ela saiu bem cedo em direção ao centro da cidade, não sei o que foi lá fazer, ela não quis falar comigo. Levantei-me sozinha e ajudei o meu irmão a preparar-se para o infantário, vesti uns jeans pretos com uma camisola branca com um estampado dos ACDC e quando já estava suficientemente mal vestida para ir para a escola dirigi-me à cozinha onde o meu irmão já esperava pelo pequeno almoço. ..."
-Mia já estou pronto, podes ler-me a história? - perguntou Martim assustando a irmã.
Mia já nem se lembrava de ter prometido ao irmão que lhe lia a história, mas assim fez, pousou a caneta de tinta azul em cima do seu novo melhor amigo e dirigiu-se à prateleira para pegar no conto favorito do irmão, "Os carrinhos".
A menina foi lendo a história lentamente fazendo com que o irmão adormecesse pouco depois do fim da quinta página, do pequeno livro colorido. Mia fechou-o e vergou-se lentamente para beijar o irmão na testa sem o acordar e retomou a melancólica história que estava a contar ao seu novo amigo.
"... Assim que acabamos de comer o pão com manteiga do dia anterior fomos para a escola, deixei o Martim na dele que por acaso é aqui perto e fui até à paragem de autocarro onde me encontro todos os dias com a Patrícia a minha melhor amiga.
Eu conheci a Patrícia na escola, ela entrou para a minha turma no sexto ano e a partir daí somos inseparáveis, ela é a única pessoa que nunca gozou comigo e nunca me deixou sozinha. Contudo chego a ter pena dela por andar comigo, acabamos por ser as duas gozadas e eu não queria que ela ficasse triste e chateada por minha causa.
Bem passando a frente as partes chatas... O meu pai saiu de casa há um mês atrás, não faço a mínima ideia do que aconteceu, mas tenho a certeza que os meus pais se vão separar, por isso é que a minha mãe está neste estado.
Ah é verdade, pelo caminho, passei por uma senhora, pareceu-me ser uma sem-abrigo, por isso dei-lhe o meu lanche, e ela deixou-me ficar contigo. O mais estranho, foi que ela disse o meu nome e eu não faço ideia de quem é que ela possa ser, mas prometo a mim mesma que irei descobrir.
Obrigada por me ouvires e por me deixares compartilhar todos os momentos da minha mediucre vida contigo.
"Beijinhos, até amanhã."
Capitulo 3
No dia seguinte, Mia acordou com o velho despertador às sete e meia da manhã, era sábado, ou seja, dia de limpezas na casa da família Silva.
A menina levantou-se silenciosamente, para não acordar o irmão, vestiu uma roupa confortável e dirigiu-se à cozinha, onde normalmente estaria a mãe já com os panos e os detergentes na mão. Assim que lá chegou, deparou-se com algo que nunca esperava ver naquela divisão. O local que anteriormente estava minimamente arrumado, agora continha latas de cerveja e maços de tabaco sem fim, uns espalhados pela mesa, outros pelo chão, aquela cozinha estava uma real pocilga.
-Mãe!? - gritou Mia na esperança de ouvir uma resposta.
Mas a resposta tardou a vir, portanto a menina começou as limpezas mesmo sem ela.
Já estava quase na hora do almoço e Mia já tinha tudo arrumado, quando Martim sai do quarto assustado:
-Mana, eu acabei de ver a mamã da janela do nosso quarto, ela está lá fora com um senhor feio e ele estava a dar uma pica no braço dela... ela está doente?
-Uma pica Martim, tens a certeza disso? - perguntou a irmã mais velha desconfiando do que a mãe poderia estar a fazer.
-Sim, era uma pica como a que o doutor deu no meu rabo quando eu estava muito quente.
Nesse instante, Maria entra em casa, bate a porta com imensa força e quase sem roupa, encanra os filhos com os olhos inchados e vermelhos sabesse lá do quê.
Martim quando vê a mãe naquelas figuras desata a chorar assustado, mas Maria, com os olhos em água, apenas vira costas e vai para o seu quarto.
Mia pegou no irmão ao colo e abraçou-o na tentativa de o conseguir acalmar.
-Tim olha para a mana, vamos fazer um jogo?
Mas o menino só chorava.
-Calma pequenote, eu estou aqui, achas que eu vou deixar que alguma coisa de mal te aconteça?
O menino acenou com a cabeça negativamente.
-Então olha, vamos limpar-te essas lágrimas e vamos passear, queres? Vamos ao parque?
-Sim! - respondeu ele soluçando.
Mia limpou as lágrimas ao irmão, vestiu-o, pegou em algum dinheiro do seu porquinho mealheiro e saíram de casa.
Pelo caminho, a rapariga ia tentando distrair o menino, fazendo vários tipos de brincadeiras. Até que de repente, a mesma senhora que lhe tinha dado o caderno no dia anterior passa por eles.
-Bom dia Mia, está tudo bem? - perguntou a mendiga.
-Bom dia, sim, está mais ou menos e com a senhora? - respondeu a irmã de Martim.
-Comigo está tudo ótimo querida, pela manhã, um passarinho chilreou-me ao ouvido que tu ias passar por mim e olha cá estás tu!
-Posso fazer-lhe uma pergunta?
-Claro que sim!
-Mia... vamos ao parque! - pediu Tim, cansado de estar ali.
-Calma Martim já vamos! - respondeu a irmã.
-É melhor ires Mia, daqui a pouco está na hora de almoço e o senhor dos cachorros quentes fecha para a sua pausa!
-Mas como é que a senhora sabe que eu vou ao "POP's"? - perguntou a rapariga assustada.
-Acho que com dois euros não consegues ir comer a um restaurante e pelo que vi bem cedo, a tua mãe não está apta para fazer o almoço hoje...
-A senhora viu a minha mãe?
-Miaaa...! - pedia o menino insistentemente.
-Vai lá Mia! - disse a senhora.
-Sim vamos... mas espere, como é que a senhora se chama?
A mendiga sorriu e ao aproximar-se do ouvido da menina disse:
-Genoveva!
Capitulo 4
A menina ficou parada a olhar para a pobre senhora desaparecendo no horizonte, até que Martim a puxa e pede de novo para irem ao parque.
Mia e o irmão acabaram por chegar antes que o "POP's" fechasse, foram lá e pediram dois cachorros quentes que seriam o almoço. A tarde passou a correr, Martim e Mia divertiram-se imenso no parque, mas ao virarem a esquina, em direção à rua esguia e sinuosa, que dava para sua casa, viram o mesmo homem que Maria tinha como companhia nessa manhã à porta de sua casa.
-Mia é aquele o homem que estava a falar com a mamã de manhã!
-Tens a certeza Martim?
-Absoluta!
Mia sabia que não era boa altura para voltar para casa, aquele homem não parecia ser de confiança. Estava a escurecer a pouco e pouco, mas a menina tinha medo do que iria encontrar mal entrasse por aquela porta de madeira lacada preta.
-Mia achas que já pudemos ir para casa? - Perguntou Martim cansado de andar às voltas pelo quarteirão.
-Acho que sim pequenote, vamos lá embora que quando chegarmos a mana prepara-te um chocolate quente pode ser?
-Siiim! - respondeu o menino todo contente.
Viraram novamente a esquina e o caminho estava livre, não havia sinais do homem nem de Maria. Eles foram aproximando-se da casa branca que por sinal era a última da rua e entraram lentamente com receio do que poderiam ou não encontrar lá dentro.
-Mia, Martim? - perguntou uma voz vinda do quarto da mãe dos meninos.
-Mãe? - respondeu num tom de pergunta Mia.
-Mia podes ser tu a fazer o jantar hoje? Eu não estou com cabeça para estar na cozinha.
A menina respondeu que sim à mãe, mas não era pelo facto de ela querer fazer o jantar, era sim porque ficou feliz de a mãe ter falado com ela depois de tanto tempo.
Os dias foram passando assim, nesta monotonia, era visível a força de Mia para aguentar a escola e as tarefas de casa, mas acima de tudo o facto de acompanhar sempre o desenvolvimento do irmão. Já Maria ia arrastando-se pelos becos do Porto, rodando a bolsa todos os dias a espera de um homem com dinheiro que a viesse acariciar.
Mia continuava a escrever no seu diário todos os dias, transmitia para o papel toda a sua dor, para que depois pudesse passar para o irmão os bons momentos.
As férias de Verão chegaram, já se passaram dois anos da partida de seu pai para algures, Martim tinha crescido cinco centímetros desde então e tinha agora seis anos. Já Mia estava igual, mas só por fora, o seu desenvolvimento a nível psicológico tinha sido terrivelmente violado nestes dois anos. Continuava uma menina forte, é verdade, continuava a ajudar o irmão em tudo e até mesmo a mãe que já pouco parava em casa. Porém era uma menina triste, pois não tinha o apoio de ninguém para além de Martim, Jojoca, Jujuba e Tritão.
Certo dia Mia decidiu sair de casa e levar o irmão a passear, coisa que já não faziam há algum tempo.
-Martim que me dizes de ir à praia? - perguntou a rapariga.
-Sim sim, quero muito ir à praia, Mia vamos!
-Então vai ao quarto vestir os teus calções de banho e buscar a toalha para sairmos rápido.
O menino vestiu-se rápido e depois de ajudar a irmã a preparar o lanche saíram de casa em direção à praia que ficava mais ou menos a uns dez minutos de casa da ex família Silva.
Pelo caminho iam fazendo jogos para passarem o tempo. Até que, dois quarteirões depois da sua casa, viram a dona Genoveva a ser alvo de murros e pontapés por parte de uma senhoras muito infelizes que simplesmente gostavam de implicar com ela.
-Mia Mia, olha aquela senhora está a levar pancada! - disse Patrícia do outro lado da rua.
-Já chamaram a polícia? - perguntou a menina.
-Não sei, acabei de chegar, mas acho que não.
Mia apressadamente pega no telemóvel e liga para a polícia e para o 112, que aparecem pouco tempo depois, ainda aquelas malditas mulheres estavam a bater na pobre senhora sem que ela se pudesse defender.
-Afastem-se todos, ia dizendo o guarda para a multidão, que estava ali a assistir ao que se pode chamar de um filme de ação ao qual Mia queria que os vilões morressem no final.
As senhoras foram presas por atentarem contra a vida da dona Genoveva, e foi Mia que a acompanhou ao hospital, deixando Martim com Patrícia.
Capitulo 5
Na ambulância, a velhinha tentava falar, mas por detrás daquela máscara de oxigénio que impedia o sangue de lhe escorrer para o pescoço, nada se percebia.
-Mi... - tentava ela dizer.
-Não fale Dona Genoveva, já estamos a chegar, vai ver que vai ficar tudo bem! - dizia a menina na tentativa de acalmar a senhora.
Até que Genoveva tirou a máscara lentamente e numa voz muito rouca já quase sem vida disse:
-Mia, eu sou tua avó.
A menina não podia acreditar naquilo que estava a ouvir, de facto ela nunca conheceu a sua avó materna, mas a mãe sempre lhe dizia que a avó tinha morrido pouco tempo antes de ela se casar com o pai da menina.
A ambulância não tardou a chegar ao hospital, contrariamente às palavras de Mia que não saiam da boca, talvez por não saber o que dizer. A sua cabeça andava às voltas como se ela própria estivesse dentro de um furacão.
-Quem é a menina? - perguntou o enfermeiro.
-Sou a neta! - respondeu Mia confiante.
A situação era bastante complicada, mas Mia só queria que a agora avó Genoveva saísse de lá viva, algo que poderia não vir a acontecer tento em conta a quantidade de ferimentos na cabeça que a senhora tinha.
O telemóvel toca horas depois, era Patrícia a ligar, ela também, estava preocupada com a senhora, mas o que a preocupava mais era o facto de a proteção de menores estar a porta da casa da família Silva.
Interrompendo a chamada, o doutor que fez a operação a Genoveva disse:
-Menina, tenho uma notícia para lhe dar...
-Doutor a minha avó vai ficar bem!?
-Ainda é muito cedo para saber-mos isso, a sua avó está em coma, ainda não sabemos como é que ela irá reagir, porém ela pareceu-me ser uma mulher muito forte e poderá voltar a ficar bem!
-Posso ir vê-la doutor? - indagou Mia com lágrimas nos olhos.
-Sim, ela já foi transferida para o quarto, eu acompanho-a até lá.
Mia passou a tarde toda junto da avó contando as suas histórias de vida, mesmo sabendo que a avó poderia não estar a ouvi-la. Até que se lembrou do que Patrícia lhe tinha dito na chamada.
-Bem avó, eu agora tenho que ir, a minha melhor amiga ficou com o Martim e eu não posso abusar da amabilidade dela. - Beijou a mão de Dona Genoveva e saiu a correr em direção a casa.
A corrida foi longa, pois o hospital ainda ficava um pouco longe de sua casa, a menina nem pensou sequer em apanhar um táxi, uma boleia que fosse, a única coisa que tinha em mente era o seu irmão a ser levado pela policia e por uma assistente social qualquer de muito bom ar, loira de olhos verdes provavelmente vestida com umas calças clássicas e um blaiser listrado.
Assim que chegou ao último quarteirão antes da subida acentuada que daria a sua casa, viu ao longe as luzes dos carros da PSP. O seu coração disparou, era com o se Mia se tivesse transformado num furacão, onde todos os seus sentimentos se envolviam cada vez mais a cada passo que dava em direção a porta de madeira que estava aberta.
-Mãe!? - chamava Mia enquanto ia entrando em casa.
Do lado de lá a resposta foi mais rebuscada.
-Chamo-me Raquel e sou a assistente social! És a Mia certo?
-Sim, onde está o meu irmão?
-O Martim está lá dentro a despedir-se da mãe, podes lá ir também se quiseres, mas não demores muito, tenho ordens para vos levar para a instituição o mais rápido possível.
-Eu não entendo, porquê que nos vai levar? Nós estamos bem aqui, está tudo bem, como pode ver à sua volta não sofremos de maus tratos, estamos bem...
-Recebemos uma denuncia anónima que nos disse que a vossa mãe era toxicodependente e vos deixava sozinhos em casa para se ir...
-Prostituir? É isso que queria dizer? Já ouvi rumores por aí também, tanto na escola como aqui mesmo na vizinhança, eu e o meu irmão somos descriminados, sempre que passamos ouvimos alguém dizer : "Pobre crianças, coitados não têm culpa da mãe que têm" ou "aquela ... não quer saber dos filhos". Somos conhecidos como os filhos da prostituta do quarteirão...
-Lamento muito Mia!
-Não, não lamente, eu sei porquê que a minha mãe está assim, ela nunca foi esta pessoa, ela sempre foi tão carinhosa, foi a melhor educadora, foi a melhor mãe possível, até descobrir que o marido, o homem da sua vida, o seu mais que tudo, a traiu com a sua própria irmã, irmã essa que atirou a própria mãe para a rua apenas com um saco de pano velho com alguns "tesouros". A minha avó está neste momento em coma numa cama de hospital, não se sabe se ela vai acordar ou não, soube hoje que a Dona Genoveva era minha avó e Deus já a quer tirar da minha vida. Agora entendo as histórias todas que ela me contava, ela disse-me que a sua filha engravidou muito jovem e que foi uma vergonha para a família, por isso expulsou-a de casa com uma barriga de cinco meses. Fiz na corrida para cá a ligação entre todas essas histórias e a minha, são as mesmas doutora. A minha mãe sofreu bastante durante toda a vida e depois do meu pai se ter ido embora dizendo-me apenas para cuidar do meu irmão, ela não aguentou, diga-me a senhora se não acha razoável tudo isto, diga-me a senhora se não acha que a minha mãe está simplesmente com uma grave depressão, diga-me, seja sincera comigo. Eu e o meu irmão estamos felizes aqui, à beira da nossa mãe! Não nos leve da nossa casa, não nos leve do pé dela.
Capitulo 6
As lágrimas não aguentaram no saco lagrimal de Raquel, a história de Mia para além de verdadeira era das histórias mais comoventes que esta já tinha ouvido. Pela sua boca não saía nem uma palavra, apenas tentava parar o choro, porém sem sucesso.
Vinda do quarto a voz de Maria suou:
-Mia!?
-Mãe?
Ambas correram para se abraçar, a mãe da menina parecia estar sóbria, coisa que Mia já não via à algum tempo. Maria estava num estado de horror, assim que viu a policia a bater à sua porta com um mandato para levar os seus filhos consigo, nem o álcool, nem o tabaco e muito menos aquelas injeções de heroína poderiam curar a dor que aquela mãe iria sentir ao ver os filhos serem levados como pássaros engaiolados.
As palavras de Mia não foram suficientes para mudar a ideia da assistente social, tanto ela como o irmão foram levados no caro de Raquel até à Associação "A Casa do Caminho". A instituição era ótima, sem dúvida, mal chegaram, os irmãos foram transferidos para um quarto onde ficavam juntos, pelo menos nos primeiros tempos, até se habituarem tanto às auxiliares como às educadoras e também às restantes crianças de lá.
Dias, meses, anos se passaram, Maria não podia ir visitá-los, foi-lhe dito pela policia, que se os fosse visitar poderia ser alvo de um processo crime.
Todos os dias Martim perguntava pela mãe à irmã e Mia dizia que a mãe estava a vê-los por uma televisão mágica e que todos os dias ela vinha dar-lhe um beijinho de boa noite depois de eles adormecerem.
Porém, dois meses após a saída dos meninos de casa, Maria não aguentou e acabou por se suicida ingerindo duas embalagens de paracetamol que a levaram a uma overdose. O corpo foi encontrado pela policia judiciária depois de uma vizinha ter ligado para a esquadra dizendo que já não via Maria à bastante tempo e que todos os dias ia à sua porta um homem com muito mau aspeto gritar a dizer que ela não se escapava de pagar o que lhe devia.
Concluindo, Maria suicidou-se por duas razões, uma porque lhe tinham retirado os filhos que eram a única coisa que lhe dava ânimo para viver e outra pelo facto de estar endividada até à ponta dos cabelos e não conseguir pagar essa divida.
Mia veio a descobrir que a mãe faleceu dois anos depois, já teria dezoito anos na altura, feitos à pouco, Martim faria oito na semana a seguir. Foi um choque para ela, ainda por cima teria que contar ao irmão de forma a que ele não ficasse muito mal com a situação.
-Martim, posso falar contigo? - perguntou Mia interrompendo a brincadeira do irmão com Nádia, uma menina muito querida da idade dele, que tinha chegado à poucos dias ao orfanato.
-Espera um bocadinho Nádia, eu já volto!
Os irmãos foram para o quarto onde tinham a certeza de que ninguém os iria incomodar.
-Tim a mana tem uma coisa para te contar está bem?
-Sim Mia conta rápido, se não a Nádia pode chatear-se comigo.
-Lembras-te da mana te dizer que a mamã tinha uma televisão mágica por onde ela nos conseguia ver todos os dias?
-Sim, mas eu sei que isso não era verdade.
-Era sim Martim, mas a mamã agora já não precisa de televisão para nos ver, ela agora está com Jesus.
-Porquê?
-Jesus veio buscá -la para ir viver com ele para o céu e ela agora consegue ver-nos lá de cima das nuvens.
-A mãe morreu Mia?
-Sim Martim, mas ela agora está muito melhor, ela agora está com todos os anjinhos lá no céu e continua a vir todas as noites aqui ao nosso quarto dar-nos um beijinho de boa noite.
-Prometes que ela vem todas as noites?
-Prometo! E até faço melhor, todas as noites vamos deixar uma bolacha e um copo de leite na nossa mesa de cabeceira, assim quando ela vier ver-nos pode comer a bolacha e beber o leite, que me dizes?
-Sim! Assim a mãe sabe que nós ainda gostamos dela e que não queremos que nenhuma família nos adote!
-Exatamente!
A conversa terminou por aí, Martim saiu feliz do quarto e foi a correr dizer a todos os meninos que a mãe dele estava no céu com Jesus e que estava bem. Mia sentia que tinha cumprido a sua missão e isso também lhe foi dito pelas educadoras do orfanato. A partir daí, todas as noites Mia acordava para comer a bolacha e beber o leite para que o irmão acreditasse que a mãe vinha vê-los.
Os dias iam passando, e não havia noticias de Dona Genoveva, os médicos disseram que lhe avisariam caso ela acordasse do coma, mas nunca mais ligaram. O pai de Mia soube que eles tinham sido retirados à mãe e que esta se tinha suicidado, porém nunca foi lá buscá-los, talvez os gémeos dos quais também era pai já lhe dessem bastante trabalho.
Capitulo 7
Mia era dona de um ser extraordinário, era uma menina bastante madura para a sua idade, algo que foi obrigada a desenvolver tendo em conta as circunstâncias. Contudo, mesmo os seres mais fortes acabam por se submeter à fragilidade humana.
O diário de Mia era o seu confidente, era lá que ela escrevia todos os seus sonhos e pesadelos, todos os seus medo e emoções, era a ele que ela confessava o seu desejo pela morte, o seu desejo por alcançar a felicidade e foi isso que ela fez.
No dia 25 de Abril de 2018, dia em que se comemorava a liberdade no orfanato, Mia abriu mão de tudo o que tinha para agarrar a sua própria liberdade. Com apenas dezoito anos, a filha de Maria seguiu as pisadas da mãe e na casa de banho das raparigas pegou uma lâmina de um apara lápis e com ela fez dois golpes profundos, um em cada braço. Poderão comparar este ato ao da Hanna Baker ou ao de outras adolescentes que põem fim às suas vidas da mesma forma. Mia não foi exceção. Foi encontrada pouco tempo depois, ainda estava viva, mas a ambulância não chegou a tempo. Na sua mão tinha um bilhete para Martim que dizia:
"Olá Tim!
Estou a escrever-te isto deitada na minha cama enquanto tu estas a brincar com a Nádia no jardim, consigo ver-te da janela a jogar ao macaquinho de chinês.
Queria pedir-te um favor e tens que me prometer que o vais cumprir. Se algum dia fores adotado por alguma família, promete-me que vais amá-los como se fossem o teu papá e a tua mamã de verdade. Promete-me também que vais portar-te bem mesmo sem eu estar lá. Mas agora vou contar-te um segredo.
Na nossa casa antiga, no nosso quarto está um caderno azul que eu não consegui trazer para cá, ele está guardado na primeira gaveta da nossa mesa de cabeceira. Quando fizeres dezoito anos, pede à pessoa que estiver a tomar conta de ti na altura para voltar lá a nossa casa. Leva contigo o caderno que me deram cá para eu escrever as minhas coisas e junta os dois. Vais ter acesso à nossa história, depois podes fazer o que quiseres com ele, mas promete-me que vais guardá-lo!
Mais uma coisa, agora eu já consigo ver a Jojoca o Jujuba e o Tritão de que tanto falavas e eu nunca acreditava, eles são lindos e adoram-te.
Sabes Tim, estou a escrever este bilhete com as lágrimas nos olhos porque sinto que não te devia deixar, mas lá em cima os anjinhos chamam por mim e eu não posso desrespeitar as ordens deles.
Quando lá chegar, eu e a mamã vamos ligar a nossa televisão das nuvens só para te ver crescer cá em baixo, para te ver correr até seres muito grande e seguires a tua vida.
Lembra-te de uma coisa Martim, a mana ama-te muito e vou estar sempre aqui ao pé de ti para te apoiar!
Amo-te muito meu pequeno Tim."
Martim foi adotado anos mais tarde, quando ia completar dez anos de idade por uma família lisboeta que tinha perdido o filho com uma doença terminal, Tim ocupava agora o seu lugar. Era filho de uns pais bastante trabalhadores e com salários bem altos que o ajudariam a formar-se em engenharia depois de acabar o décimo segundo ano.
Assim que completou dezoito anos de idade, Vera a sua mãe adotiva deu-lhe uma caixa de papelão que continha no seu interior todos os objetos particulares de Mia, incluindo o bilhete que ela deixou para o irmão e o seu diário suplente. Foi nesse exato momento que Martim se lembrou do que a irmã lhe tinha pedido à anos atrás.
-Mãe, pai, agora que já fiz dezoito anos, queria pedir-vos um grande favor.
-Claro, tudo querido! - respondeu a mãe adotiva.
-Queria pedir-vos para ir ao Porto com a Nádia visitar a minha antiga casa, gostava de ver como é que as coisas estão, tenho muitas saudades. Espero que compreendam.
-Claro que sim Martim! - respondeu o pai. -Acho que fazes muito bem em ir!
Foi então que em Julho, no fim dos exames Martim e Nádia a sua namorada de longa data, foram de viagem com destino ao Porto. Os seus vizinhos reconheceram-no de imediato e como já era de esperar o burburinho foi instantâneo.
Martim ia subindo a rua esguia por entre as casas falantes, dirigindo-se ligeiro até um casebre no final da estrada. Na porta tinha uma pequena lápide de mármore antiga, já quase a cair aos pedaços, cor de musgo com umas flores desenhadas em volta, que dizia: "Família Silva". O pequeno casebre estava completamente abatido, as suas paredes que outrora eram brancas, estavam agora num tom amarelado, cheias de fungos e quase a desabar. Todas as divisões estavam num estado lastimável, havia cartas de contas por pagar no meio do chão, as paredes estavam cheias de humidade assim como os móveis de madeira antiga que Maria adorava.
Tim dirigiu-se de imediato ao seu quarto, levando Nádia pela mão, abriu a primeira gaveta da mesa de cabeceira, assim como Mia lhe pedia no bilhete e lá estava ele, o pequeno caderno azul ciano já com as páginas amarelas por causa da humidade.
O irmão de Mia sentou-se na cama de casal outrora dos dois e pegou em ambos os cadernos para os juntar assim como a irmã lhe tinha dito. Mas mal abriu o caderno que o orfanato cedeu a Mia saiu de lá de dentro uma folha solta que Nádia correu a apanhar. Nessa folha estava escrito:
Capitulo 8
"Olá mamã, tenho saudades tuas, sei que ultimamente já não falavas tanto connosco, parecia que nem estavas cá, mas estavas pois eu conseguia ver-te.
Eu e o Tim viemos para um orfanato como sabes, a avó Genoveva não resistiu ao coma e acabou por falecer... e disseram-nos depois que o papá estava no Brasil com a tia e os gémeos... ele não deve saber o que aconteceu ainda.
Sei que a culpa disto tudo foi dele mãe, tu não merecias isto, mas nós também não e muito menos o Martim que ainda é tão pequeno. Ele chora todas as noites por saber que nunca mais irá conseguir ouvir-te cantar como só tu cantavas todas aquelas canções de embalar que no momento te vinham à memória. E eu também choro mamã, eu choro sabendo que nunca mais te vou poder ver, choro porque a última imagem que tive tua foi num sofá de pano preto encostado à janela no canto da sala, enquanto nós saíamos e tu só choravas... choro por saber que não te consegui apoiar e choro ainda mais agora porque te perdi.
Minha mamã, quem me dera um dia voltar a ser criança e puder abraçar-te e sentir o teu perfume, tocar no teus lindos cabelos negros... quem me dera voltar a estar contigo.
Mãe, o Martim está bem aqui, mas eu vou realizar o meu desejo e vou voltar a ser criança a teu lado.
Até já mamã!"
Martim e Nádia leram ambos os diários, emocionando-se a casa página que viravam, era incrível a maneira de como Mia conseguia passar para o papel toda a sua mágoa e angústia, mas ao mesmo tempo todo o amor que sentia pela mãe e pelo irmão.
-O que vais fazer com eles? - perguntou a namorada de Tim dando-lhe o pequeno caderno para a mão.
-Vou fazer algo que vai imortalizar a minha irmã!
-Vais publicá-los?
-Vou!
E foi assim que a história de Mia correu mundo, sendo traduzida em vários idiomas.
E lá do céu Mia agradecia a Martim dizendo:
-Obrigado por me dares a oportunidade de voltar a ser criança!
