Capítulo 77
ALICE
O Henrique parou assim que o viu aproximar. Trazia umas calças de ganga rasgadas pretas com uma T-shirt vermelha e um polo branco colocado em cima dos ombros. Parece igual desde a última vez que o vimos durante as férias de verão, talvez o cabelo tenha crescido um pouco, mas a atitude continua a mesma, cínico e provocador.
- O que é queres Lucas!? Não te chegou o murro que levaste da última vez!? - senti a respiração dele acelerar e os seus músculos ficarem tensos.
- Henrique calma por favor! - exclamei segurando-lhe com mais força na mão. Este dia é demasiado importante para mim para que um estúpido como o Lucas o estrague.
- Ouve a tua miúda mano. Parece que ela não é assim tão pitinha como parece!
A sua mão aproximou-se da minha cara e colocou uma mecha do meu cabelo por detrás da minha orelha.
- Tira a mão dela seu filho da...
O Lucas caiu no chão logo depois do Henrique lhe ter empurrado. Murros começaram a surgir das duas partes e eu não sabia o que fazer, não havia ninguém que ajudasse, vi muitos miúdos a pegarem nos telemóveis para filmarem e de repente um círculo estava formado à nossa volta.
- Henrique para! - gritava eu incessantemente mas nenhum dos dois se acalmava. Não consigo mexer-me, sinto os meus pés colados ao chão tal como naquela noite na discoteca quando vi o meu pai com a Tânia.
De repente, o António perfurou o grupo de pessoas aos berros e separou-os juntamente com o Filipe.
- Mas que merda é esta meu!? - gritou o António contra o meu namorado.
- Ele tocou-lhe António, aquele filho da puta tocou-lhe! - vociferou.
Ergui a cabeça e olhei na direção do Henrique, o seu lábio inferior estava coberto de sangue assim como a sobrancelha direita, o seu rosto vermelho arroxeado, olhou para mim e com uma expressão de culpa baixou a cabeça.
Não gosto de brigas, lutas, nada que esteja ligado com violência e ele sabe disso. Vê-lo amarrado a um rapaz enquanto é esmurrado e o esmurra dá-me vontade de chorar e gritar o mais alto possível, mas não consigo.
Estou imóvel a olhar para o meu namorado ensanguentado enquanto o seu melhor amigo o tenta acalmar. Os ruídos da escola parecem estar longe, e mesmo que a multidão tenha dispersado assim que o António acabou com a "festa", sei que muitos ainda estão a aproveitar o show.
- Henrique deixa-te de merdas meu, acaba já com isto antes que o diretor saiba disto! - exclamou o Filipe.
Penso que já não o vejo desde a noite da discoteca, porém, também é normal, tendo em conta que não saímos muitas mais vezes com os amigos do Henrique depois disso.
Senti o meu corpo voltar ao normal e nesse momento o meu namorado já estava junto a mim.
- Alice desculpa! Eu perdi o controlo, aquele gajo ele... eu não suporto que ele te toque nem sequer que fale contigo! Peço desculpa Alice eu...
- Eu sei. - respondi em tom baixo.
- Anh?
- Eu também não o suporto Henrique! - concordei, porém não consigo olhá-lo nos olhos. Sinto uma mistura de raiva com medo e insegurança neste momento, só me apetece fugir daqui.
- Então isso quer dizer que...
- Isso quer dizer que tu vais à enfermaria cuidar do que tens na cara e depois conversamos.
O toque da campainha soou e eu dei um pulo. As pessoas começaram a andar apressadas até às salas enquanto eu, o Henrique e os amigos dele, continuávamos parados no meio do corredor.
- Eu levo-te à tua sala. Vais ter o quê agora?
- Não deixa estar! Eu vou com o Filipe!
- O quê!?
Caminhei em direção ao rapaz alto de T-shirt preta e calças de ganga. Lembro-me o quão simpático ele foi comigo na discoteca, espero que me ajude novamente e me tire deste maldito corredor.
Baixei a cabeça e segui-o deixando o Henrique e o António para trás. Não disse uma única palavra, olhava para o chão e para as paredes cobertas com cartazes de sensibilização contra o bullying. O Filipe está a usar o mesmo perfume que tinha naquela noite, lembro-me de que quando o encontrei foi um alívio sentir outro aroma que não o do tabaco, é realmente bom.
- Alice é só que...
- Eu não quero falar sobre isso! - interrompi.
- Eu só te ia perguntar qual é a tua sala. - continuou embaraçado.
- Claro, desculpa é que eu fiquei um bocado nervosa com aquilo tudo e ...
- Eu sei! Não precisamos de falar se não quiseres, mas já está quase a dar o segundo toque e é melhor me dizeres qual é para que eu te possa levar lá.
- Certo... - retirei o horário do bolso pequeno da mochila. - tenho aula de português na A16.
- Ótimo, estamos perto então. É só virar no corredor à direita e chegamos lá.
- Então se quiseres podes ir para a tua sala, não precisas de me levar à porta.
- Não te preocupes. - respondeu encolhendo os ombros e continuando a meu lado.
Caminhava com as mãos nos bolsos, as suas pernas torneadas, provavelmente por culpa do futebol, tentavam manter o mesmo ritmo que as minhas. Sei que é difícil para alguém tão alto acompanhar uma pessoa comparativamente mais baixa como eu, mas tal como o Henrique, ele também fez esse esforço.
- A16, parece que estás entregue.
- Sim, parece que sim. - sorri. - Obrigada por me teres acompanhado e desculpa por te ter empurrado para esta situação é só que eu não tinha mais ninguém a quem recorrer e tu...
- E eu estava lá.
- Sim, estavas...
- Bem, eu tenho de ir andando, não quero começar o ano com uma falta, o meu pai mata-me se sonha!
- Sim, claro! Obrigada mais um vez!
- Não tens de agradecer, boa aula.
- Para ti também. - ele virou costas e seguiu calmamente pelo corredor. Sei que vai ter aula de psicologia, porque é da mesma turma do Henrique. Neste momento agradeço por ser mais nova e não estar na mesma turma que eles, não era capaz de passar a aula toda com o meu namorado no mesmo espaço que eu, provavelmente, a tentar conversar comigo ao mesmo tempo que o professor dava a aula.
Bati à porta e esperei ouvir a voz da professora antes de entrar.
- Bom dia, hmmm, Alice certo!?
- Bom dia, sim sou eu. - confirmei fechando a porta atrás de mim. - Desculpe pelo atraso eu estava um pouco perdida e...
- Claro, é normal, não te preocupes! Bem podes sentar-te aqui à frente, és o número um e as normas da escola são que os alunos se sentem por números, portanto.
- Eu sei, na minha escola antiga também funcionava da mesma maneira. - sorri e dirigi-me à carteira que me foi designada por uma regra estúpida que eu sempre detestei. Desde sempre fui o número um e em todas as escolas em que andei a regra mantinha-se.
- Bem Alice, não te queres apresentar à turma!? Seria muito bom para nós saber um pouco sobre a nossa aluna nova.
- Eu acho que ela já se apresentou lá fora stora! - exclamou num tom provocador uma rapariga sentada duas mesas atrás da minha.
- Como assim!? - perguntou a professora.
- Não viu o espetáculo que o Henrique e o Lucas do futebol fizeram lá fora!? Uma rapariga da turma deles disse-nos que a culpa era da aluna nova e...
A turma toda começou a rir-se e todos olhavam para mim como se eu fosse algum brinquedo perdido do dono. Percebi naquele momento que o Henrique é verdadeiramente conhecido cá na escola e não gostei de saber disso. Sinto as dúvidas e incertezas voltarem todas ao mesmo tempo e tenho medo de deixá-las afetar-me como fiz da última vez com a Vitória.
- Okay já chega! Vamos acabar com as brincadeiras Mafalda! Alice apresenta-te por favor.
- Tem mesmo de ser professora? - perguntei envergonhada e com a cabeça baixa. Eles continuam com os risinhos e eu temo não ser forte o suficiente para suportar tanta vergonha.
- Tem!
Levantei-me e mantive-me em frente à secretária:
- Chamo-me Alice Ribeiro, tenho dezasseis anos e sou do Algarve, Odeceixe. Mudei-me, há uns meses, para cá com o meu pai e a minha irmã gémea. - Voltei a sentar-me rapidamente.
- A tua irmã também anda cá na escola? - perguntou a professora.
- Não, ela entrou para uma escola de artes performativas cá em Lisboa também.
- Bom, se for como a irmã não terá muito jeito para a representação... "Para Henrique para!" ahahahahah!
- Mafalda eu já disse que acabou!