Capítulo 51

INÊS

Conhecer de perto a família do Enzo só me fez sentir ainda mais miserável, a sua história é difícil, isso é óbvio, porém, consigo perceber que a sua nova família o ama verdadeiramente e, mesmo ele não sendo capaz de os tratar por pais, eu sei que os vê como tal. A Camila é da minha idade, quer dizer, um ano mais nova que eu, ela ainda tem quinze anos. Demo-nos bastante bem, assim como com os restantes membros da família que eu já conhecia da cafetaria.

- Inês, desculpa a pergunta, mas está tudo bem? - perguntou a Camila enquanto me preparava a cama num colchão junto da dela.

- Eu tive uns problemas com o meu pai, algo que me deixou muito em baixo, por isso o Enzo deixou-me passar aqui a noite. Espero não incomodar! - tentei explicar de uma forma rápida, não quero voltar a relembrar o assunto, ainda por cima nem conheço bem a rapariga.

- Não incomodas nada, podes ficar aqui sempre que quiseres. - respondeu com um sorriso no rosto. O seu cabelo ruivo ondulado faz-me lembrar a princesa Merida do filme "Brave", tanto uma como outra são bastante bonitas.

Ela emprestou-me um pijama cor de rosa com coelhinhos, que eu aceitei de bom grado, apesar de não ser nada algo que eu usasse, coelhos não são bem o meu tipo de animal. Conversamos um pouco sobre o Enzo enquanto estávamos deitadas, a Camila esteve a contar-me algumas peripécias da sua infância com ele e de como ela reagiu com a sua chegada. Ela tinha apenas três anos quando se deparou com um irmão mais velho, porém, apesar de ela o tratar por irmão, ele prefere chamar-lhe apenas de Camila.

Começo a entender que o Enzo tem imensos problemas, mas, penso que o pior deles todos seja mesmo a falta da mãe biológica. Não me sinto confortável o suficiente para falar com ele sobre este assunto, no entanto, gostava de entender melhor o que sente em relação a toda essa situação.

Acabamos por adormecer enquanto víamos um filme parvo que estava a dar na televisão, digo "parvo", porque para mim, todos os romances são parvos, eu não sou muito fã dessas histórias lamechas e dramáticas sobre um casal que se ama mas acaba, ou por não conseguir ficar junto, ou algum deles morre, o que vai dar praticamente ao mesmo.

Acordei no dia seguinte com o barulho da porta do guarda roupa da Camila.

- Desculpa, não te queria acordar, estava só a pegar em algumas roupas para me vestir na casa de banho. - disse ela tentando desculpar-se.

- Não, não tem mal, eu é que peço desculpa por estar a intrometer-me na tua rotina.

Ela sorriu simplesmente. A sua cara pálida é incrivelmente fofa, e os seus olhos azuis realçam-na ainda mais.

- Tens o pequeno almoço na cozinha, o Enzo fez questão de o preparar para ti. Nós vamos sair agora para a cafetaria, se quiseres podes vir ter connosco quando estiveres pronta. - avisou-me ela entrando no quarto já vestida.

- Obrigada. - sorri.

Eles saem bastante cedo para o trabalho, só não sabia que o Enzo também trabalhava de manhã, pensei que ele ficasse apenas com o turno da tarde. Vesti a mesma roupa de ontem, o que não é nada confortável por sinal, e dirigi-me à cozinha para tomar o tal pequeno almoço.

A casa do meu namorado não é tão grande como a minha, nem tão bonita, é muito mais antiga e diferente, porém, ao contrário da mansão em que eu vivo, esta parece ser muito mais acolhedora.

Assim que entrei na divisão, um cheirinho de torradas acabadas de fazer abalou o meu coração. Este era o pequeno almoço favorito da minha mãe, torradas com compota de amora.

Um bilhete estava pousado ao lado de um copo com sumo de laranja: "Bom dia linda, espero que tenhas dormido bem e que a Camila não te tenha chateado muito. Hoje infelizmente estarei a trabalhar, mas espero poder ver-te lá. Também espero que gostes do pequeno almoço que preparei para ti. Beijinhos grandes! Enzo."

O Enzo é um rapaz incrível, ele pensa sempre em tudo, cada pormenor, cada virgula, cada pequeno detalhe em que ninguém repara lá está ele para notar. Sorri para o bilhete e guardei-o dentro da capa do meu telemóvel. Apercebi-me agora de que estou sem bateria e sem forma de o carregar. Preciso de voltar para casa, eu sei disso, mas ao mesmo tempo tenho medo do que vá encontrar lá quando chegar. Não estou preocupada com a Alice, ela deve estar com o Henrique e se está com ele está bem.

Acabei de tomar o excelente pequeno almoço e saí de casa deles depois de ter desfeito a pseudo-cama onde dormi a noite passada. Sinto-me na obrigação de passar pela cafetaria e agradecer-lhes por tudo, apesar da vontade ser mínima de fazer o desvio.

Quando cheguei, lá estava ele com a sua camisa preta vestida, os seus olhos azuis brilharam assim que me viram entrar pela porta, fazendo a sineta tocar. Não estive lá muito tempo, apenas agradeci e segui o meu caminho em direção a casa, algo que ocultei do Enzo, o que lhe disse foi que iria dar uma volta até ao centro de Lisboa.

ALICE

- Estou à espera Henrique, vais contar-me ou não!?

- Qual é o teu problema Alice!? - dizia ele andando de um lado para o outro no quarto.

- Não é nenhum, eu só quero saber o que aconteceu, que pelos vistos foi algo grave, pelo menos para ti...

- São assuntos meus, é algo do passado que não vale a pena ser relembrado agora!

- Tudo bem, não queres contar não contes, mas não penses que é assim que me vais fazer confiar em ti, com essas atitudes só me dás mais razões para desconfiar. - estou a tentar persuadi-lo a contar-me. Talvez não seja o mais correto a fazer, eu sei, mas eu não aguento quando me escapa algum pormenor.

- Tu és impossível! - exclamou ele sentando-se finalmente na cama.

Não respondi, apenas cruzei os braços e mantive-me de pé à sua frente.

- O que aconteceu foi que aquele gajo é um porco ...

- Já disseste isso... muitas vezes! - frisei eu revirando os olhos.

- Se queres saber o que aconteceu, pelo menos deixa-me falar! - exclamou ele olhando fixamente para mim.

Baixei a cabeça como sinal de derrota e continuei a ouvi-lo.

- Eu e o Lucas eramos amigos desde pequenos, desde que me lembro. Partilhávamos tudo, histórias, amizades, brinquedos, eu sei lá, tudo mesmo! Mas quando tínhamos dezassete anos, eu comecei a namorar com uma rapariga, ela era loira, alta, magra, para mim era a mulher da minha vida. Andávamos juntos na mesma turma e talvez essa tenha sido mais uma das razões para eu me ter afastado tanto dele. Eu sabia que ele também gostava dela, tínhamos dito um ao outro o quanto ela era boa assim que a vimos pela primeira vez. Mas eu apaixonei-me por ela. Nessa altura nós já jogávamos no Benfica, mas a escola também tinha uma equipa da qual também fazíamos parte e ela juntou-se logo à claque feminina. Para mim, ser o namorada de uma rapariga da claque era incrível, comecei a esforçar-me nos treinos para ser o melhor avançado e isso fazia com que ela supostamente gostasse mais de mim. Os dias iam passando e eu sentia-me numa verdadeira escola americana, tipo aquelas que vemos nos filmes, eramos conhecidos por todos e eramos tipo respeitados, eu sei lá, mas isso dava-me pica, eu gostava da sensação de ser conhecido.

Enquanto eu vivia os meus dias de glória, o meu melhor amigo ia preparando o seu golpe. Ele não era popular como eu, ele não tinha a rapariga que queria, ele não tinha nada naquela escola sem mim e tanto eu como ele sabíamos disso.

No dia da final do campeonato inter escolas, eu estava radiante, tinha as bancadas cobertas de cartazes com o meu nome, o treinador estava super confiante, tudo corria bem, até que uma miúda mais nova me deu um bilhete.

- O que é isto? - perguntei à rapariga.

- Foi a tua namorada que me mandou entregar-to, adeus! - respondeu ela e saiu a correr.

Alice, no bilhete estava escrito "Vem ter comigo aos balneários, tenho uma surpresa para ti!" Obviamente corri para os balneários masculinos como um puto estúpido à procura de sexo, era só nisso que em pensava enquanto percorria os corredores da escola. Assim que cheguei, tive uma surpresa, porém, não era a surpresa que eu esperava. Lá estava ela, sentada em cima do lavatório apenas com o sutiã e a saia da claque, mas não estava sozinha, o Lucas estava com ela, os gemidos começaram a ecoar na minha cabeça, aquela imagem de o ver entrar dentro dela, perseguiu-me durante meses. Ela sabia que eu estava lá, ela olhou para mim com um sorriso nojento na cara e chamou-me para a beira deles.

Alice tu não tens noção do quão mau aquilo foi para mim, eu realmente gostava dela, não era apenas pela fama, e ele era o meu melhor amigo. Se te estás a perguntar se me juntei ao grupo, é óbvio que não, eu não conseguia ficar ali nem mais um minuto.

A partir desse dia decidi dedicar-me só ao Benfica, saí do desporto escolar e tentei esquecer que eles existiam, mas isso nunca foi totalmente possível. Conheci o António quando ele se juntou à equipa e ele ajudou-me a desanuviar durante algum tempo, até que eu conseguisse finalmente esquecer a Vitória e deixar de lado o palhaço do Lucas...

- Vitória!? - perguntei eu surpreendida.

- Sim babe, aquela Vitória que tu conheceste na discoteca, essa mesma Vitória...

- Então foi por isso que ela...

- Que ela o quê!? O quê que ela te fez Alice? Ela consegue ser bastante manipuladora...

- Calma Henrique, ela só me esteve a fazer perguntas, perguntas que por acaso me estavam a irritar bastante!

- Que tipo de perguntas? - Notei preocupação nos seus lindos olhos azuis.

- Sobre a minha idade e há quanto tempo namorávamos, esse tipo de perguntas.

- Eu não entendo aquela pu...

- Não vale a pena! - interrompi o palavrão que estava prestes a sair da sua boca.

- Desculpa, é só que eu não gosto de estar com ela, mas o António parece que gosta de pegar comigo e convida-a sempre, o que me tira do sério.

- Eu não gosto do António! - afirmei eu. Tenho de ser verdadeira relativamente a isto, aquele António é um parvo e um provocador.

- Eu sei babe, eu já tinha reparado nisso, mas foste tu que me fizeste ir à discoteca, lembras-te!? - disse ele piscando-me o olho.

- Sim, mas se soubesse tudo o que ia acontecer depois disso acredita que nunca tinha insistido para ir! - exclamei deixando cair um suspiro que nem fazia ideia que tinha guardado.

A história do Henrique tocou-me um pouco, agora consigo perceber porquê que ele saia com tantas raparigas, era a sua forma de esquecer aquela cabra da Vitória. Mas, ao mesmo tempo, toda esta situação deixou-me desconfortável e com medo de ser só mais uma que o ajude a esquecê-la.

- O que se passa? Em quê que estás a pensar? - perguntou-me ele pegando na minha mão. Reparei agora que me tinha sentado na cama em frente a ele, talvez já esteja sentada há algum tempo, mas não me lembro de o ter feito.

- Nada em especial... - tentei disfarçar.

- Posso tentar adivinhar o que te corrói os pensamentos!?

- Podes. - sorri. Parece que o jogo das charadas se tornou no nosso jogo favorito.

- Eu acho que estás a pensar que também és só mais uma para eu esquecer a Vi... Acertei!? - Não entendo como é que ele faz aquilo, mas começo a ficar seriamente assustada.

Encolhi os ombros e virei ligeiramente a cara, tenho vergonha de olhar para ele neste momento.

- Alice! Alice olha para mim! - mandou ele. - Achas mesmo que se tu fosses apenas mais uma eu teria ido atrás de ti? Eu não era assim! Quando achava alguma gaja bonita tentava a minha sorte, se ela me desse para trás, o que sinceramente era muito, muito raro, eu desistia, passava para outra. - ele segurava o meu queixo obrigando-me a olhar para ele. - Quantas vezes tenho de te dizer que gosto mesmo de ti!? Depois de todos os problemas com o teu ex namorado, que por coincidência é meu primo, depois das birras da tua irmã gémea, tu acreditas que se eu não gostasse verdadeiramente de ti ainda estava aqui?

Esta pequena, mas sentida declaração de amor fez-me corar, sinto que as minha bochechas vão rebentar de tão vermelhas que estão. A minha falta de palavras não favoreceu muito a minha situação, por isso, o Henrique teve de agir fazendo os nossos lábios colidirem e transmitirem a paixão que ambos sentimos um pelo outro, ou pelo menos eu acho que existe paixão. Será que há paixão da parte dele? O meu subconsciente continua a alertar-me, mas eu tenho de confiar no meu namorado.

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